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De Anselmo Grun, monge beneditino:
“Aplica-se à fé o mesmo requisito que à Filosofia: a possibilidade de maravilhar-se.” “No início da reflexão filosófica maravilhamo-nos perante o facto de que somos, em vez de não sermos; assim também no início da atitude de fé está o maravilhar-se perante a beleza do mundo e o mistério do ser humano.” (1)
Fé – também uma atitude de confiança no que nos excede; reflexão filosófica – também uma sabedoria que amadurece na reflexão pessoal sobre a experiência vivida do que nos excede.
Acontece o milagre altamente improvável de que sou – eu, que poderia nunca ter sido. Descobrir-se contingente, estar assim à beirinha do precipício de milhões de possíveis em que não estou incluído.
Como dizia, em “A Rapariga das Laranjas”, a mulher da personagem principal que se desolava, à medida que o seu cancro avançava, por ter de morrer tão cedo:
“ – Mas tu estiveste aqui. E isso é verdade para sempre. Lucky you.” (2)
Kant deixou-se maravilhar, tanto perante o enigma irredutível de um universo imenso, constelado de estrelas incontáveis, como perante o não menos misterioso pulsar da “lei moral” na profundidade do coração humano. (3)
Na sua obra, esta contemplação maravilhada traduziu-se numa sabedoria mais abrangente, mas não na expressão de uma fé mais profunda.
Que silêncio permite que a criação se nos desvende como bela e a presença do ser humano nos surja como misteriosa, a ponto de nos sentirmos maravilhados?
Que linguagem pode expressar o sentido dessa beleza e a evidência desse teor misterioso?
Anselmo Grun fala de uma “capacidade de falar por imagens”. Essa mediação é ela mesma descrita por uma imagem. O que são as imagens? São janelas. (4)
A Capacidade de falar por imagens é a de rasgar aberturas na nossa forma de ver o mundo conhecido; dar a ver “o que está fora”, abrir mirantes para o que só pode existir “para lá de tudo”; algo que não pode ser apenas uma finalidade a alcançar por mero alargamento das dimensões do humano; algo cujo sentido exige essa liberdade em relação ao nosso existir no mundo com os outros, como uma transcendência autêntica.
Falar por imagens torna-nos capazes de expressar o que é maior do que o simplesmente “novo” para nós, mas que é, antes, o “incessantemente novo” e “sempre maior”, que se torna presente à criação, pela sua beleza e ao ser humano, pelo seu mistério.
O Autor Beneditino assegura-nos que “as imagens não prendem o mistério do ser”, por que não se reduzem a indicar objetos, não se referem a realidades objetiváveis, isto é, que possamos reduzir a “coisas”. (5)
Esta linguagem capaz de criar imagens é, pois, também ela, a “linguagem da beleza”. É a mesma disposição para “deixar-se maravilhar” que subjaz tanto à descoberta do que nos supera, como à possibilidade de o articular na linguagem.
Vivenciar a possibilidade deste radicalmente “para além de” e “sempre mais” é, ao mesmo tempo, causa e resultado do espanto e do deslumbramento que suscita. Eles configuram uma disposição interior que tanto permite cumprir o trabalho da reflexão como pode inspirar a atitude de fé.
A Vida – Agenda CAD – Setembro – OE
(1) - Anselm Grun - "O que é a Religião?" pag. 24 (2) - Jostein Gaarder - "A Rapariga das Laranjas" (3) - Emmanuel Kant - "Crítica da Razão Prática", 1788 (4) - Anselm Grun - "O que é a Religião?" pag. 24 (5) - id.